O amor da lima e do Nelo


Estávamos todos sentados na sala Azul do consultório. O único escrito anunciava “Sinta prazer na nossa cafetaria”. Por entre várias pessoas sentadas e imóveis destacava-se a única que se movimentava. A mulher em questão limava as unhas em modo "frenético" e a filha, a seu lado, observava-a em modo "apático". O telefone toca, ela pousa a lima e começa o show:
- Oh Pedro, procura na mala preta... sim... Ai Nelo, dentro da mala preta está a carteira (nível 1 de irritação da senhora Limadeira).
E continuava:
- Ai caramba, já te disse...procura melhor... Sim, ainda estamos aqui mas devemos estar quase despachadas... claro que vou ter (claramente subiu para nível 2 de irritação quando fala em ir ter)
- Dahhhh... o que é que eu te disse?!?!?! Ai Pedro se não tivesses nascido, tinhas de ser inventado. Simmmmmm....vamos lá ter, arre! (nível 3 de irritação, com a lima quase a servir de espada e pronta para  o duelo)

O telefonema acaba e num só suspiro diz: “Aiiiiiiiiiiiii...é o amor!!!!!”

Confesso que, nesta altura, levanto os olhos para me certificar que aquela criatura não é um “Transformer”. O quê?! Ultrapassa 3 níveis de irritação com o Pedro/Nelo e depois diz-me que é o amor?! Mas o melhor estava para vir. A senhora Limadeira retoma o trabalho que lhe está atribuído, suspira, pensa na sua vida com o Pedro/Nelo e desabafa com uma paciente que está sentada ao seu lado, e que, pelo seu aspecto, já leva uns bons anos de avanço em tudo na vida.
- Já viu isto? Não conseguem fazer nada sem nós. Nada! Não sabe nunca onde está, onde arruma... Qualquer dia vai ver o que lhe acontece (sangue, meus senhores queremos ver sangue!!!) começa a ser ele a preencher o IRS e está feito! Vai só ver o que lhe vai chegar! Ai vai, vai...

O meu ciclo normal de respiração é bloqueado nesta altura. Não podia ser. Não se faz isto a uma pessoa, pensei eu. Tudo menos o IRS, senhora. Começo a sentir pena do Pedro/Nelo e o meu nível de irritação a subir. Preencher o IRS é um golpe baixo. A senhora Limadeira continuou com a bênção da senhora que estava sentada ao seu lado e da filha que, entretanto, ligara o telemóvel e já estava em modo “Off” . Voltou a dar uma esfrega nas unhas e a proclamar o seu amor:
- Só sabe fazer de chauffeur e acha que faz um grande favor. Oh minha senhora... é que não faz nada. Sou eu que faço tudo!!! Tudinho!!! Aiiiiiiiiiiiiiiiii é o amor! Porra! Mas olhe, mais vale isto do que fazer como os outros que se separam assim que aparece a primeira chatice!

Eu continuo sentada a tentar não olhar para ela, mas com esta frase não há como evitar um contacto visual. Ela sorri-me qual Lara Croft, pede a minha bênção para aquela afirmação e eu retribuo-lhe com metade do meu sorriso.  Aceno um sim com a cabeça e penso: “Mas serás assim tão burra que não percebes que foste tu que criaste esse monstro Amor/Pedro/Nelo?! Agora aguenta-te, limadeira! E se quiseste fazer TUDO... parabéns! Agora candidata-te a Provedora da Santa Casa e pelo caminho passa na Wikipédia para procurares a definição de amor. Não queimes anos de poesia, de metáforas, de encontros, de seduções contigo e com o Pedro/Nelo, tá?!?!?” 

Senhora Limadeira, a próxima vez que for à sala Azul, em vez de pensar no prazer que a cafetaria lhe pode proporcionar,  encontrará isto escrito na parede:

“Em amor é um erro falar-se de uma má escolha, uma vez que, havendo escolha, ela tem de ser sempre má." Marcel Proust

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