Vindíma literária - colheita de Vitorino Nemésio

O menino desenha

O menino desenha.
O pólen do seu lápis cai nas flores maltratadas;
no papel, a mãezinha é apenas uma bolha.
O menino risca e pede a Deus que o seu pai venha
ver estas coisas desenhadas.
A irmãzinha mais moça, quer o lápis e olha,
uma lágrima em bico o seu olhar envidraça;
a chuva do menino são uns pontos tão depressa
que o lápis se estilhaça.
O menino faz o galo, a torre, a casa e o judeu,
que mostra aos outros meninos:
mas a casa é que tem as pernas e o galo é que abre janelas,
a torre é que usa as barbas e o judeu tem os sinos
por não ter nada de seu.
Oh meu rico menino, que fazes as coisas belas!
A irmã mais velha do menino há-de
ser a mãe dos sobrinhos que desenharão também
o tio com uma bolha, como ele vê em bolha a sua mãe.
"Tem óculos, não está quieta e é muito boa";
o menino garatuja,
e vê-se a luz e os vidros, e até a bondade
que veio à sua mão suja
do lado em que estava a pessoa.
O irmãozito do menino
também está metido, e bem, neste quadrado:
É aquela figura de que o avô disse: - "É um penino!"
sem se lembrar que o artista podia ficar magoado.
Ah, meu menino, minha estrela a arder de dia,
não deixes que te mexam no traço virginal que aprendeste
quando eras o fio de sol na escuridão que enchia
a tua mãe - bolhinha, enquanto te não desprendeste.

(Vitorino Nemésio, in O Bicho Harmonioso)

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