Pão por Deus, valha-me Deus!
A tradição já não é o que era... "Pão por Deus, Pão por Deus! Bolinhos, bolinhos em louvor de
todos os santinhos"
“Vão os três, cada um com um saco de pano. Tocam à porta e
cantam o Pão Por Deus. Depois ouvem a resposta, agradecem e seguem. Se alguém
vos convidar a entrar em casa, o que dizem?”
“Obrigado, mas não!”
“Podem ir...”
E foram. Seis, sete e dez anos (e trinta e nove a acompanhar
a primeira casa para fotografar o momento!). Foram. E não foram pelos andares do
prédio, foram pelas ruas de um bairro recheado de vivendas, à partida
tranquilo. Quinze horas!
A rua é comprida, cerca de dez casas de cada lado “Dá pano
para mangas” pensou. Ou, neste caso, "Bolinhos para saco". Eles continuaram pela
rua e ela rapidamente encontrou tarefas para fazer no espaço fora da casa.
Subitamente teve de varrer o quintal, regar as plantas, cortar pontas soltas
das árvores, apanhar as azeitonas que caíram para o chão, tratar do pássaro...
no entretanto, a cabeça dela espreitava para a rua e lá estavam eles: “Que bom!
Que engraçado! Bons tempos os meus quando eu pedia o Pão por Deus! Ainda bem
que eles vão sentir o mesmo.”
“Já devem ter terminado a rua... Se calhar já estão a
voltar...” ...
“Não...” ...
“Já tinham tido tempo para fazer a rua e voltar para trás...”
...
“Não” ...
“Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh.... esqueci-me de avisá-los para
não se afastarem!!! Caraças! Mas eles não se afastam, de certeza...!”
...
“Se calhar é melhor ir ao fundo da rua verificar onde estão.
Levas a máquina fotográfica só para disfarçar”...
“Uff, ainda lá estão! Agora voltam para trás de certeza, já
devem estar cansados”
...
“Estranho, nunca mais chegam” ...
“Porra, nunca mais chegam”
...
“Ai a gaita, nunca mais chegam” ...
“E agora?! Será que se atreveram a ir para mais longe?! E se
eu saio de casa para ir procurar e eles regressam?! E ...”
e, começaram a chegar doses e doses de imagens, filmes,
sequências de terror. Começaram a chegar as aberturas dos telejornais, as capas
do Correio de Manhã, os azares de uma vida e a linha ténue entre a felicidade e
o pânico...
“Eh pá, caramba, mas porque não voltam?! Será que foram até
ao parque?! E...”
e, chegaram as imagens do azar de um dia inofensivo, os
atropelamentos e raptos
“Caraças, mas como é que eu quando era pequena fazia isto com
os meus primos, e agora não consigo como mãe?! Ai que lindo! Lindo trabalhar a
autonomia! Pois, pois... Mas de baixo do meu olho! Caraças, e se eles se
perdem? E... “
e, chegou o alívio de ter como prática maternal fazer decorar
a morada e o número de telefone, tal como o que fazer no caso de se perder. De
seguida chegou a fúria da limpeza. Canalizar forças e suor para aspirar, lavar,
limpar, esfregar, arrumar.
“Ah! ah! ah! Bela ansiedade esta construção de autonomia! Raios!
Mas eu era pequena, saía de casa com os meus primos, voltávamos à noite,
andávamos por estradas de alcatrão, terra e mato e ninguém nos procurava, e não
havia telemóveis! Será que elas (mãe e tias) nos espiavam? Não acredito! Só
precisávamos de chegar à noite e pronto! E no entretanto lanchávamos o que
recebíamos e ninguém se alarmava! E...”
e, pensou no que as pessoas fundamentais à sua vida diriam desta
situação,
“A Rita vai adorar a experiência, de certeza. Hummm. Afinal
isto até é giro! E vai dizer que até tive muita coragem”
“A Marta vai dizer-me que isto é espetacular e que quer que o
seu filho faça esta brincadeira. Hummm. E vai fazer!”
“A Paula Sena vai amar e rir-se na minha tromba! Hummm. Ela
provavelmente fez o mesmo com o filho!”
“ Os irresponsáveis vão achar que sou totó, que é um exagero
mas o que fazer?!
São totós!”
“A minha mãe ... hummm ... não faço ideia, e tenho
curiosidade em saber!”
e, mesmo assim chegou o calor e suor ao corpo. Ok. Acabou o
tempo deles. Tivesse ela companhia e um saía por um lado da rua, e o outro por
outro. Mas não. A hipótese era deslocar-se de forma rápida. Saiu de carro, mas
antes deixou um papel escrito, em cima do banco de jardim “Meninos, se chegarem
a casa liguem para o meu telefone, a partir do telefone de casa”
“E agora? Vou por onde? Já sei, vou em direcção ao Parque que
é o sítio onde vão ficar eternidades a brincar. Mas e a estrada? Tu já o
ensinaste a atravessar é certo, mas é sempre contigo por perto, é certo! Aiiiiiiiiiii
e os pedófilos malucos que andam nos parques?! E... ”
e, saiu a toda a velocidade no carro, deixou os portões
abertos no caso de eles chegarem e perceberem que podiam/deviam entrar. Levou a
máquina fotográfica no caso de não querer dar parte fraca e fingir estar a
fotografar a fauna e flora do bairro! Subiu uma rua longa, enorme, gigante,
cortou à esquerda. Nada. Outra rua longa, enorme, gigante. Nada. Um carro
tapava o portão de uma casa. Lá estavam eles, à porta, esperando por mais uma
surpresa.
“Uffffffffff... e agora?! Vou-me embora para não trair o voto
de confiança que lhes dei? Agarro a máquina fotográfica e fotografo?! Finjo que
ia só a passar?! Ui! Catada!”
“Olá, periquitos! Estão todos bem?!”
“Simmmm (todos transpirados!). Porque é que estás aqui de
carro?”
“Think fast... think fast... think fast! Porque estava a
ficar preocupada convosco e decidido procurar-vos, e também porque me esqueci
de vos dizer para não se afastarem muito. Esta é a rua limite. (imagens da
bruxa Arreganhadentes descem sobre mim – “Não vão para lá do meio do bosque
porque lá mora uma bruxa que come criancinhas desaparecidas e com os seus ossos
constrói o muro da sua casa”) Continuem. Já sabem, sempre pelo passeio!”
o alívio e alegria tomaram conta da ansiedade!
“Que bom! Que engraçado! Bons tempos os meus quando eu pedia
o Pão por Deus!” e voltou a esperar...
...
...
“Mas que diabo, só faltavam duas ruas, porque demoram tanto
tempo?! Oh não, tudo outra vez?! Mas desta vez sabes o itinerário, vai
espreitar à esquina!”
Lá estavam, à porta de mais uma casa...
Às dezassete e trinta entraram em casa. Suados, cansados e
com três sacos cheios de doces, fruta, bolachas, moedas, frutos secos. A
palavra “muito”, pela parte deles, foi repetida várias vezes para descrever o
Bom que a tarde de Pão Por Deus foi. Pela minha parte a palavra “muito” foi
utilizada para descrever o quanto me custou, mas também o quanto eu fiquei
orgulhosa de os ver sozinhos na rua e a crescerem. A saberem falar com pessoas
estranhas. Saberem agradecer tudo. Saberem aceitar as respostas. Saberem andar
na rua, na estrada.
Felizmente que a primeira saída à noite está longe, bem como
a primeira viagem solitária... Pão por Deus, valha-me Deus!
Um belo texto entre o deixar brincar na rua, viver a rua, aprender a rua e aquele aperto no coração que bate quando não os temos sobre a nossa alçada. Entre a ambivalência de os deixar ir e de mantê-los seguros, o melhor é ir espreitando... Boa, Rita!
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