Já fui bivalve



Educaram-me a ser um bivalve. Educaram-me a esconder-me numa concha de cada vez que sentia um perigo ou uma situação estranha. Lembro-me disto. Lembro-me que se ficava fechado na concha, o tempo necessário, até não sentir perigo. Depois, voltava a espreitar e, se a costa estivesse livre, avançava. Mas até o avançar era feito de forma segura, sem grande alarido, com ausência de ruído e tudo feito da forma mais discreta. Biquinhos de "pés" e silêncio. E com isto, também me mostraram que o silêncio era uma forma de falar. 

Enquanto viaja à boleia da minha concha imaginava mil conversas, outras tantas respostas e mais de mil perguntas. E imaginava, perguntava e respondia a todas elas. 

Em dias de marés tempestuosas encerrava-me na concha. Em dias de mar chão espreitava o mundo inteiro... Inteiro não, parte, porque sendo um Ser minúsculo a minha vista apenas alcançava pequenos apontamentos da vida. 

A determinada altura da minha vida a concha sofreu alguns embates fortes. Não partiu, mas rachou em vários lados. Isso fez com que eu me voltasse a fechar lá dentro mas... (há sempre um "mas") desta vez fui surpreendida por uma novidade. Mesmo fechada dentro da concha, agora, conseguia ver alguma luz que passava por entre as fendas existentes. E era uma boa sensação. Gostava ainda mais daquele esconderijo. Tranquilo, silencioso e com alguma luz do dia a chegar até mim. 

Dias, noites e marés foram passando por mim, até que aquele esconderijo deixou de ser suficiente. Aliás, o tamanho da minha curiosidade deixou de caber naquele espaço. Conhecia parte da Luz do dia, mas as estrelas da noite não. Foi então que resolvi abrir as duas valvas de modo a nunca mais poder fechá-las. Depois disso, todo o silêncio foi quebrado e as minhas perguntas passaram a ter respostas repletas de outras vozes. Foi então que comecei a coleccionar todas as luzes que a noite pintava no céu. As marés vivas, o mar chão, as tempestades, a Lua, o Sol passaram a ser recebidos sem aquela concha protectora. 

Agora o que me resta dela é a necessidade do mar. Quebrou-se a concha, quebrou-se a ausência de ruído. Restam ainda muito vestígios de todo aquele crescimento. Um deles foi o de ter atenção aos pequenos apontamentos, outro o de saber escutar, outro o de gostar de silêncio. Mas sem duvida que o maior deles foi, o de me terem ensinado a crescer dentro de uma concha, mas com o esqueleto e a coluna vertebral do Amor. 




Jericoacoara

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