Brinde ao Alentejo!
Hoje um grande amigo alentejano faz anos! Tenho a sorte de me ter cruzado com ele numa escola em Lisboa. Ele leccionava o 1º ano e eu também. Lembro-me de ter chegado em Novembro, de serem cerca de catorze professores (não gosto do termo "colegas", ensinaram-me há uns anos que "colegas" são as senhoras que trabalham na estrada de Coina) e de a sala destes ser uma nuvem de fumo. Recém chegada, com meninos à espera e sem uma palavra que prestasse apoio... só fumo. Nessa manhã valeu-me uma miúda de aspecto fora do comum, a professora de artes que estava a trabalhar na Biblioteca. Ela levantou-se, mostrou-me o meu horário e inclusive escreveu-o num papel. Subi à sala e perguntei onde estava o material dos meninos: "No armário, professoraaaaaa" e a chave?: "Nas empregadas, professoraaaa" ok. Ali estivemos, em processo de adaptação uns aos outros, e ali ficámos meio à deriva até todos conseguirmos chegar ao mesmo caminho. Sentia-me completamente sozinha entre tanta gente. Mas aos poucos também com os adultos fui construindo as minhas teias. A primeira foi a grande amiga J. (a tal da biblioteca), e que ainda hoje o é. Depois o professor A. que hoje faz anos. Depois a professora A. que era bruta como as portas, só mais tarde percebi que era só com os adultos pobres de espírito, com os meninos era justa e uma excelente professora. Depois a Dona L. que era a funcionária-mãe-de-todos. Linda, um doce. Depois a C. uma professora galinha, que tinha uma história de vida tão difícil, mas que a sua alegria de viver era contagiante. Depois a M. que partilhava a sala comigo. Eu de manhã, ela de tarde. Depois a F. que nos obrigava a contar pacotes de leite e a preencher os maps, com a seriedade de um documento das finanças. Foi um ano lectivo que, depois das desconfianças tiradas para o lado, deixou amizades profundas. Muitas histórias se passavam naquele lugar. As melhores eram sempre os do meu amigo alentejano. Um Homem que, do alto das suas dezenas de anos, parecia ter a alegria e a disposição de pouco mais do que um digito na sua idade. E ele contava histórias, histórias e mais histórias, mas em especial contava histórias aos seus alunos. Os seus programas eram e são transformados em histórias e são dados num ápice, com felicidade, com vontade e prazer. Detesta burocracias e sumários. Detesta fazer fichas de avaliação em computador. Detesta gente pobre de espírito. Ele é vida, e tudo o que for amorfo ele recusa. Vive desengonçado no cimo das suas pernas em forma de X e enquanto caminha nelas dá vivas às pessoas que com ele se cruzam na vida. Cumprimenta toda a gente que cruza o olhar com o seu, ou que lhe acene um olá e toda a gente o conhece no bairro como O Professor. E é mesmo isto que ele é. Ele é um Professor por inteiro. Que pinta, que lhes faz fatos no Carnaval com papel de jornal, que ensina a vida aos seus meninos, que lhes dá muito mais e sobretudo o que está fora do programa, que fica triste quando eles não chegam lá onde ele quer, que passeia com eles na rua, que lhes dá história e mitologia no 1º ano, que lhes conta histórias do seu tempo no Além-Tejo, que lhes dá liberdade de pensamento, que dá voltas e voltas entre a vida e os programas com os seus alunos. A sua vida é isso, um novelo emaranhado de fios coloridos, em que cada fio transporta uma outra vida.
Se alguma vez fizessem um Museu do Professor, o meu amigo estava lá bem representado. E a sua vida de Homem-professor teria em exposição: tintas, lápis de carvão e canetas esferográficas, muitos papeis, chávenas e bules, telefones antigos, sinos, bonecas de plástico, gatos chineses, pregadeiras, malas, chapéus, berlindes, ferros de engomar antigo, móveis antigos, discos e filmes. Também teria em exposição as histórias dos beijos piu-piu da sua mãe, uma ausência demasiado cedo do seu pai, as memórias de um alentejo na meninice, as traquinices com os seus manos, as vidas dos seus sobrinhos adoptados ao longo da vida, os seus trabalhos artísticos, as viagens a França e a Itália, as histórias de uma tia chique e das "criadagens".
Hoje ele faz alguns anos, e como o Álvaro Magalhães também partilhou com ele o dia de nascimento, aqui fica uma comunhão dos dois.
O BRINCADOR
Quando for grande, não
quero ser médico, engenheiro ou professor.
Não quero trabalhar de manhã à noite, seja no que for. Quero brincar de
manhã à noite, seja com o que for. Quando for grande, quero ser um brincador.
Ficam, portanto, a
saber: não vou para a escola aprender a ser um médico, um engenheiro ou um
professor. Tenho mais em que pensar e muito mais que fazer. Tenho tanto que
brincar, como brinca o brincador, muito mais o que sonhar, como sonha um
sonhador, e também que imaginar, como imagina um imaginador…
A minha mãe diz que não
pode ser, que não é profissão de gente crescida. E depois acrescenta, a
suspirar: “é assim a vida”. Custa tanto a acreditar. Pessoas que são capazes,
que um dia também foram raparigas rapazes, mas já não podem brincar.
A vida é assim? Não
para mim. Quando for grande, quero ser um brincador. Brincar e crescer, crescer
e brincar, até a morte vir bater à minha porta. Depois também, sardanisca verde
que continua a rabiar mesmo depois de morta. Na minha sepultura, vão escrever:
“Aqui jaz um brincador. Era um homem simples e dedicado, muito dado, que se
levantava cedo todas as manhãs para ir brincar com as palavras”.
Álvaro de Magalhães (O Brincador,
Asa, 2005)
É isto amigo... tu és um brincador de palavras com os teus alunos. E ainda por cima em alentejanês! Hoje brindo a ti e dou graças à vida por te ter na minha história. Quando for grande quero ser assim como tu! Bêjinhos da Senhora Cegonha!
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