Ser Castelo, Ser Casa
Nunca tive necessidade de pensar no acto de "parir" uma casa. Todas as que apareciam à minha frente já estavam concebidas e crescidas. Por isso, o novo projecto de vida - a reconstrução de uma casa - me é um desafio+assustador.
Eu e o meu querido-amigo-de-longa-data Luís Pinho (Arquitecto) começámos a olhar para as medidas da casa (chinês para mim; língua materna para ele), a olhar para o passado, o presente e o futuro daquele Castelo. E à medida que fui/vou pensando no futuro daquele espaço, fico com a sensação de que, aquela casa, vai deixar de ser um conjunto de paredes de cimento, para passar a ser um Ser vivo. É uma sensação que resulta das conversas que vamos tendo. De pensar desde a raiz até à copa... de pensar como vai ser o parto e como vamos "educar" aquele Ser. Que educação lhe vamos dar? Como queremos que ele se mostre ao mundo? Como queremos que ele se comporte com o Mundo? Como queremos a sua espinha emocional? E quando ele for teenager? Que transformações pode sofrer sem lhe danificar a espinha emocional?
Nós os dois temos a vantagem de nos conhecermos há alguns anos e de ambos amarmos a mesma pessoa: a sua esposa, uma grande amiga minha. Existem portanto alguns pontos a favor do nosso "Ser Castelo", nomeadamente, a facilidade da nossa comunicação, o conhecimento do percurso de vida... E porque esta ligação existe, ele sabe como me cativar (nas questões arquitectónicas - nomeadamente no tentar convencer-me que não é necessário que o wc tenha bidé!)...e acertou na "mouche" quando iniciámos uma reunião a falar do seguinte texto (enviado por si dias antes)...
- depois do texto, eu ficarei em silêncio a saborear uma das melhores descrições para o momento que atravesso -
por MIA COUTO
Certa
vez, numa floresta de Niassa, no Norte de Moçambique, eu surpreendi uma casa em
flagrante acto de nascer. Nascia sem ruptura: era, literalmente, dada à luz.
Recordo a circunstância desse parto esquivo, desse imperceptível resvalar de
natureza para coisa feita. Eram três os camponeses que nos acompanhavam para as
margens do Rio Lucheringo, longe das linhas dos mapas. Nós dissemos: «o acampamento deve ficar aqui». Eles
olharam o céu, revolveram o chão com os pés descalços e mediram as mais
próximas ramagens. Em poucos minutos recolhiam os dados precisos: Luz, Sol,
Vento, Chuva. Em menos de uma hora nós tínhamos uma casa erguida. Sem parafusos,
sem pregos, sem cordas. Uma simples catana circulara de mão em mão e o golpe
certeiro fizera surgir a estaca do tronco informe, a corda da casca fibrosa, o
tecto do anónimo capim. Quando nos instalámos já tinha sucedido o milagre: a
casa surgira do caos.
Ali
iríamos trabalhar com inesperado conforto. Mais que conforto: em estado de
pertença ao lugar. As tendas que leváramos acabaram não saindo dos carros. As
barracas de campanha eram um abrigo sombrio, uma protecção contra o frio e os
bichos nocturnos. Mas não chegavam nunca a ser casa. E nós agora éramos não
residentes mas habitantes. A nossa cabana de pau a pique era um ventre com o
universo todo dentro. Era como se estivéssemos habitando a árvore, como se a
nossa presença ali fosse apenas sugerida, leve pegada de pássaro. Nessa varanda
nós não recebíamos sombra. Nós éramos a sombra. Não estivemos na margem do rio.
Nós fomos margem e rio.
Afinal,
a casa não fora construída. Era como se ali tivesse sempre constado e as mãos
apenas a tivessem revelado. E, contudo, tinha arquitectura, dimensões e
divisões, quarto, cozinha e mesmo uma casa de banho com assento. Podíamo-nos
sentar sob um improvisado alpendre que fazia de varanda e ali ficar a olhar a
tarde. Os camponeses já há muito se haviam retirado mas eu continuava a sentir
as suas mãos esvoaçando como asas em redor do ninho. Eu escutava essa
permanência como um conforto de quem fez nascer sem que, em troca, nada
houvesse que morrer.
Recordo-me
de tudo isto para falar de Carlos Nogueira e sua pensada construção. Essa obra
que nasce sem ruptura, como um acontecer sem causa, um desenho sem traço. A
edificação que não revela o esforço: essa é a marca primeira da beleza. Um
poema necessita, como condição primeira, de ser escrito. O maior inimigo do
poema, todavia, é ser demasiadamente escrito. O mesmo se passa com a
arquitectura. Carlos Nogueira escreve com a leveza de quem simplesmente diz,
sussurra e instiga. Nele eu confirmo: os materiais da obra não são a pedra, o
ferro, a tábua. São a luz, a sombra, a mão de quem sonhou.
Mais
do que estruturas, o arquitecto desenha ausências, frestas solares, restos da
noite. Quando ele crê que está fechando ele está entreabrindo. Onde se acredita
haver parede prevalece um vão. Em tudo se desenha a eterna varanda onde olhamos
a mentirosa paisagem exterior. Porque tudo se converte em interioridade, espaço
ainda por desenhar, rosto sem outra moldura que não seja o nosso próprio olhar.
Carlos
Nogueira me ensina como os sábios construtores de Niassa: a casa não é onde o
homem se fecha. É onde o Homem se abre para dentro."
Comentários
Enviar um comentário