O ataque da vaca mirandesa





Beijo Sabura voou até Vila Real e não se arrependeu. Arrastou a asa até à serra e foi perceber onde nasce o frio.

Da terra pouco conheceu, mas do trabalho da Nuclisol Jean Piaget e da Estalagem do Paço muito ficou a saber. A primeira instituição alimenta os afetos, a segunda os estômagos. Pequena que sejam tão longe. 

Começámos por perceber onde nasce o frio... e é lá, entre serras e muito longe do mar de cá. O recorte da paisagem lembra que estamos muito perto do céu. E de facto, a instituição que visitámos é um pedaço de céu. Ela abrange o pré-escolar, o 1º ciclo e ainda tem uma valência de apoio a pessoas com deficiência mental. Fomos, Beijo Sabura e Tiçanita, convidadas para falar de poesia, palavras, prazeres literários com uma equipa já altamente motivada para o tema. Ao início da tarde a assistência variava entre os três anos e as muitas dezenas, e éramos cerca de cento e setenta pessoas a ouvir histórias. Gosto de contar as histórias que se colam à minha pele e acredito muito nelas, por isso, o momento é levado como uma espécie de rio a correr que desagua num mar de prazer. Quem conta histórias (sejam elas da sua vida, da vida do vizinho, dos livros, dos antepassados) sabe que vai conquistar quem escuta através do que dá e do que recebe. Torna-se uma espécie de dança mas embalada pela cadência das palavras e emoções. Se a nossa voz aumenta o herói cresce, anda, corre, luta... se a nossa voz diminui o herói apaixonou-se, escondeu-se, protegeu-se... se a nossa voz se cala o herói desviou o caminho do nosso e agora escutamos o silêncio. E uma das coisas que mais prazer me dá é escutar o silêncio quando conto histórias. É suster o herói e ficar à espera do segundo certo para continuar. Passámos sessenta minutos neste jogo entre bruxas, mulheres apaixonadas, ursos gigantes, letras, tranglomangos e heróis. À tarde passámos cento e vinte minutos numa partilha de palavras, com palavras. Aliás, com as palavras certas. Com as pessoas certas. A minha Tiçanita é uma expert em contos, poesia, cozinhados estranhos, viver a vida (já falei dela aqui)... uma espécie de amiga-companheira-farol-2ªmãe-crítica-editora ...e foi ela que animou esta conversa. Ao longo do dia fomos assistindo sempre a tantos momentos de verdadeiros afectos, entre crianças, adultos, adultos-crianças, adultos-adultos... só de olhar ficávamos de barriga cheia. Instituições inteiras a trabalhar olhando uma criança como um ser fundamental, não são comuns. Nós encontrámos esta no meio das serras do Marão e Alvão. E antes do nosso regresso alimentámos o corpo com uma daquelas refeições que ficam a habitar a memória por muito tempo. Posta mirandesa acompanhada de batatas a murro e grelos. Claro está que hoje será água acompanhada de água e água à sobremesa. 
Eu, que sou uma viajante-andorinha, que gosto de ir sempre para o sul e calor, aqui confesso que aquele norte me soube bem. Também confesso que já fui castigada pela vaca mirandesa que comi às postas, uma vez que hoje, tenho os beiços feitos numa bolha só. Ela enviou um ataque herpiano e eu deixei-me derrotar. Há prazeres que saem caros...

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